Igor Moreira, membro do Movimento dos Conselhos Populares-MCP e da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP
Quando milhões de pessoas foram às ruas em
2013, a primeira reação dos autoritários encrustados em mídias,
governos, tribunais e aparelhos de segurança foi reprimir brutalmente as
manifestações civis, não dar ouvidos ou visibilidade às demandas
sociais e políticas que elas traziam, não condenar os abusos e
violências contra cidadãs/os.
Diante da hegemonia momentânea de
movimentos sociais que atordoaram a grande mídia e acuaram governos,
vendo o povo apoiar os manifestantes apesar de toda campanha contrária, o
autoritarismo jogou sua primeira isca: plantar o ódio através da
violência policial e da manipulação. É óbvio que cansados de apanhar e
ser caluniados, alguns manifestantes reagiriam. A mídia televisiva
apostou então na narrativa da violência – horas de manifestações mal
aparecem, não se ouve as palavras de ordem, mal se vê as faixas, a
interação com os transeuntes, nada disso. Mas há espaço farto para os
confrontos desencadeados pelas dispersões violentas empreendidas pelas
polícias.
Com certeza se gastou mais com gás lacrimogênio do que com
muitas políticas sociais. E em meio à fumaça a mídia “cria” os black
blocs – até então irrelevantes em número e influência. Muitos jovens
indignados morderam a isca, vestiram-se de preto e entraram no jogo de
falar pela violência, já que as palavras são ignoradas. Finalmente a
globo conseguiu influenciar os rumos do processo e sua base foi
justamente os “black blocs”. Mesmo quando quem reagia à violência
policial não tinha nada a ver com as ideologias que adotam tal tática,
todos foram assim rotulados, inclusive os policiais infiltrados
flagrados a jogar coquetéis molotovs.
Com a narrativa da
violência, buscou-se afastar as pessoas pelo medo. Mas mesmo sem ir às
manifestações, a maioria continua a apoiá-las – é óbvio, nada mudou, por
que mudariam de opinião? Então, a nova isca: aumentar a intensidade de
ódio. Repressão e calúnias diárias até conseguir o seu objetivo maior,
concretizado na morte de um cinegrafista. Agora a isca é para os
políticos em ano de eleição: ganhar visibilidade midiática com leis
duras para fazer o que as políticas públicas não fizeram – acalmar a
população. Para que uma lei penal a tratar manifestações. Por que uma
conduta já tipificada no código penal receberá uma pena mais dura quando
praticada numa manifestação do que no carnaval, num jogo de futebol, ou
no dia a dia? O que é “desordem pública” e por que as pessoas que se
juntam para protestar serão tratadas com mais rigor do que formação de
quadrilha?
A criminalização (um manifestante poderá pegar pena
maior que um homicida) tem como objetivo principal o niilismo. Fora das
ruas, frustradas, as pessoas simplesmente desistem de querer mudar o
país. Os insistentes serão encarcerados. E não serão os tais vândalos,
pois a polícia prende sem critério, aleatoriamente, forja provas, como
vimos largamente em 2013. Isso alguns esquecem: a maioria das prisões
são injustas, são brasileiros presos por uma máquina repressiva voraz
que trata todos os manifestantes como inimigos, independente do seu
comportamento. Vem então o segundo efeito do niilismo: a violência
política. Se pequenos grupos morderem a isca, responderão à
criminalização através da linguagem da violência, já não mais nas
manifestações que estarão esvaziadas pelo medo. E é isso que os
autoritários querem – uma nova guerra desigual contra vanguardas que,
encurraladas, partem para o enfrentamento martirizante, “justificando”
leis draconianas e mais militarismo.
Assim é mais fácil governar:
ao invés de democratizar as cidades e as instituições, encarcera-se
aqueles que protestam. Aí está o verdadeiro foco da escalada autoritária
– moradores de bairros que se revoltam contra violência policial ou
descaso do poder público, populações e movimentos que lutam por
transporte público e de qualidade, movimentos e comunidades que lutam
por terra e moradia, sindicalistas, ambientalistas e outros ativistas
que promovem lutas por direitos. E pessoas e famílias de todas as
classes e setores sofrerão, pois o autoritarismo traz essencialmente
isso: sofrimento!
A IMPORTÂNCIA DOS MOVIMENTOS SOCIAISNesse
cenário é obrigação dos movimentos sociais de luta assumir a linha de
frente da história. Alguns lutadores vacilam diante de ilações do tipo:
manifestações na copa, ou no ano desta e das eleições, beneficiam a
direita. Ora, a direita está nos governos despejando, devastando,
aprovando leis anti-populares, prendendo e espancando quem luta.
O
fato de milhões de brasileiros não caírem no engodo da copa foi uma
grande vitória dos movimentos que lutam pelo direito a cidade. O pacote
do capital atrelado ao megaevento é de negação do direito a cidade, é
segregador, autoritário e violento. Compreender isso e derrotar
politicamente a copa da Fifa (ela ocorrendo ou não) é uma enorme vitória
subjetiva do poder popular, perante a enorme derrota material para as
populações das cidades, e pode colocar as disputas sociais urbanas em
outro patamar. Isso é disputar hegemonia.
Ao mesmo tempo, tentamos
minorar ou reverter os prejuízos aos atingidos diretos (os removidos,
p.ex.) e indiretos (as populações em geral).
O que está em jogo é o
modelo de cidade: a do capital onde ela está a serviço do lucro; ou a
cidade democrática com qualidade de vida pra quem nela vive. Também o
modelo político: o das decisões concentradas a serviço das elites,
autoritário e repressor; ou uma democracia viva, onde as populações têm
poder de decisão sobre os rumos da cidade e do país, onde as lutas por
direitos não sejam criminalizadas e a política militarizada.
Em
2013 os movimentos sociais tiveram papel central para desencadear as
manifestações e para garantir a auto-harmonia destas. Mesmo diante da
brutalidade da polícia e da revolta que ela gera, garantiu-se um nível
elevado de pacificação muito acima da média brasileira, graças à postura
ativa de milhares de militantes sociais que sabiam bem o que estavam
fazendo. E o mais importante: os movimentos garantiram na rua o encontro
de uma sociedade segregada, como raras vezes na se vê no Brasil.
Daí
a responsabilidade dos movimentos sociais se articularem desde agora
para elevar o ânimo e qualidade das manifestações que ocorrerão, com
razões de sobra, durante a copa. Para que fique claro que o povo está
nas ruas lutando pela democratização das cidades e da sociedade, para
que megaprojetos não atinjam mais populações, que se pare de vez o
massacre dos pobres nas periferias, para que a resposta dos governos
seja com medidas democratizantes e inclusivas, e não com mais repressão e
violência.
Fonte: ANOTE